23 março, 2010

Reencontro


"Aquele era o hotel das suas escapadelas. Não com outras mulheres, porque tinha sempre sido fiel. Era o seu refúgio quando o casamento e os três filhos exigiam demasiado dele. Bastavam-lhe dois ou três dias para que pudesse regressar a rotina dos dias, de todos os dias. Não mentia a mulher, dizia-lhe que ia passar uns dias fora, e agradecia que ela compreendesse. Aliás, era uma rotina que ambos praticavam e que tinha feito com que a união de 15 anos se tornasse mais segura. Mas esta vez tinha algo de diferente. Ela tinha saído de casa dois dias antes. Tinha partido com um olhar estranho. Como se algo estivesse em risco. Eram proibídos os contactos entre eles durante esse período. As regras eram conhecidas. Mas ele não estava a aguentar ficar em casa com esta incerteza. Pediu então à mãe que tomasse conta dos netos por uns dias e partiu para o seu hotel. Precisava de um certo sossego para pensar no seu futuro. No futuro deles.
Chegou ao início da tarde. Em Setembro o calor ameno, sem vento, convidava mesmo a uns dias de ferias. O gerente, velho conhecido, saudou-o com o sorriso de quem vê chegar um amigo.
- Quer o quarto do costume, senhor doutor?
- Já me conhece. Sou uma criatura de hábitos.
- Nunca se sabe o futuro. – retorquiu o homem atrás do balcão.

Aquela frase, naquela conjuntura, obrigou-o a pensar. Será que tinha chegado a um ponto de viragem? Em todos nós há um momento em que questionamos se somos felizes ou não. Ele sentia que era feliz. Depois pensou se se sentia completo. E aí vacilou. Sim, tinha casado com a mulher que amava. Sim, tinha arranjado um belo emprego. Sim, a vida corria-lhe bem. Mas .. faltava algo. Faltava o elemento surpresa. Faltava o inesperado. Faltava sentir-se vivo.
Seguiu até ao quarto em que ficava sempre. Virado para a serra e com a piscina uns metros abaixo. Pensou em dormir um pouco, mas a espreguiçadeira do exterior estava convidativa. Pediu um toalha na recepção e, com o livro debaixo do braço, seguiu para a piscina. Pouca gente. Uma família com dois filhos pequenos, um casal de idosos, e uma silhueta feminina à distância. Tinha vindo para descansar e por isso estendeu-se a ler o seu livro. Deitado de barriga para baixo, em breve caiu num sono profundo. Passaram algumas horas e o sol já fugia quando acordou. Alguns metros ao seu lado, seguindo para o hotel, a figura feminina caminhava. Deveria ter a sua idade, mas o biquini cor de rosa na pele morena fazia sobressair o corpo firme de uma bela mulher. Sentiu uma erecção e não pode deixar de sorrir.
- Ah, meu velho, não sabes que viemos em descanso! – pensou, baixando os olhos.

Decidiu dar um mergulho, aproveitando os últimos raios de sol. Ali, debaixo de agua, sentia um relaxamento incomparável. Dizia o seu signo que o seu elemento e o fogo mas sempre foi na agua que se sentia em casa. Prolongou de tal forma o banho que quando saiu, o ar frio da noite o gelou. Correu até ao quarto, respondendo com um sorriso às piadas dos empregados. Tomou um duche demorado. Ao sair, olhou para o espelho. Já não o fazia há muito tempo. Quarenta e dois anos de idade. Para trás tinha ficado a magreza que o caracterizou durante anos. Tinha agora um físico robusto e cuidado. Não era narcisista mas gostava de ver o corpo em boa forma. Como a mulher da piscina. Mais uma vez, o calor do seu pensamento acordou o seu pénis. Soltando uma gargalhada, olhou-se no espelho e exclamou:
- Mas tu hoje estás doido! Vamos lá vestir a ver se encontramos a razão da tua loucura.

Vestiu-se e perfumou-se. Calçou-se e penteou-se. Deu por si a preparar-se como se fosse para um encontro. Abanou a cabeça. Estava assim por uma pessoa que só tinha visto de costas. Desceu pelo elevador e encaminhou-se para a sala de jantar. Sentou-se na sua mesa de sempre e só depois reparou na misteriosa mulher. Mais uma vez ela estava de costas, com um vestido decotado que deixava ver umas costas morenas e bem definidas. Os cabelos compridos caíam sobre os ombros. Era sem dúvida uma figura atraente, mesmo sem ter visto o rosto. O empregado costumeiro aproximou-se e entregou-lhe a lista.
- Recomendo-lhe o bacalhau com natas.
- Confio, como sempre. Diga-me uma coisa, quem é aquela bela figura na mesa do canto?
- É uma hóspede habitual. O senhor nunca a tinha encontrado? – perguntou surpreso.
- Não, estou certo que me lembraria.
- É uma senhora casada, mas que aparece sempre sozinha. – esclareceu cúmplice.
- Olhe, é como eu. – sorriu.
- Exactamente. Como o senhor doutor. – disse com um sorriso levemente malicioso, enquanto rodava para a cozinha.

Casada. Nem tinha pensado nessa possibilidade. E na verdade, não fora o aviso do empregado e tinha-se esquecido do próprio estado civil. Mas porquê?! O que se passava com ele para se abstrair de tal forma da realidade? Começava a recear estar a perder o contacto com a sua vida quotidiana. Ou seria apenas uma fase normal da vida de um casamento? A vida não traz livro de instruções, mas um homem precisa de indicações. Ou será que é mesmo assim, às cegas, que se constrói o caminho? Já tinha ouvido falar das crises de meia-idade mas sempre lhe pareceu algo que aconteceria apenas aos outros. Nunca lhe apeteceu comprar um carro desportivo ou ter mulheres mais novas. Aliás, era uma mulher da sua idade que o tinha despertado naquele dia. Levantou os olhos em direcção a mesa dela e ela já não estava la.
- Raios! – pensou – Ponho-me aqui a pensar e nem olho o que se passa a minha volta. Ao menos tinha visto se é bonita ou não.

Entretanto chegou a comida e decidiu apreciar apenas a comida. Sem pensar em mais nada…

Quando acabou o jantar, vacilou entre ir para o quarto ou dar um salto ao bar. Não que tivesse muita vontade, mas a simpatia contagiante que o barman tinha, obrigava-o a ir cumprimenta-lo. Caminhou devagar. A digestão do alimento e do pensamento obrigava-o a isso. Entrou no bar e logo viu o sorriso enorme do homem que sabia tanto de bebida como da vida. Teria os seus cinquenta e muitos, sessenta anos. Tinha uma vitalidade à prova de bala e, à medida que se aproximava do balcão, podia confirmar, um aspecto invejável.
- Grande William! – o verdadeiro nome era Guilherme mas o seu aspecto britânico e a sua paixão exclusiva ao whisky William Lawson, fazia com que os clientes o tratassem assim.
- Senhor doutor, que bela surpresa! Sou um homem de sorte hoje. – respondeu, estendendo a mão enorme mas delicada de quem manobra copos e garrafas.
- Não é caso para tanta euforia, a minha presença. – fingiu, agradado por ser tão bem acarinhado.
- A sua presença é sempre uma festa mas tenho a sorte de ter os meus clientes favoritos ao mesmo tempo. Creio que isso nunca aconteceu.
- Ah, então não sou razão única. – deliciado por fazer parte de um grupo selecto de clientes favoritos.
- Doutor, o senhor vem ca há quantos anos? Uns dez, não! É o homem com quem mais me agrada conversar. Tem uma visão do mundo mais alargada que a maioria. É um optimista por natureza. É o azul do mundo. – explicou, enquanto servia a bebida que ele queria sem nada perguntar – Mas existe uma cliente favorita. Uma mulher belíssima. Por dentro e por fora. É ela que me dá a visão do mundo que não consigo ter e que nem mesmo o doutor me dá: a visão rosa do mundo. Tem um pessimismo suave de quem espera o pior apenas porque deseja o melhor. Para si mesma e para os outros. E ela está cá hoje também.
- Ah, mas onde esta essa parceira deste duo? - brincou.
- Esteve aqui! Tomou um café, foi dar uma volta pelo parque e prometeu que voltava para uma conversa. – incrível como conseguia manter a conversa enquanto atendia os outros clientes com esmero.
- Não me digas que é uma mulher com a minha idade, que hoje está com um vestido preto sem costas? – perguntou, não tendo dúvida que a resposta seria afirmativa.
- Exacto. Já a conhece? – sorriu William.
- Confesso que até agora só lhe conheci as costas. – riu.
- Ah, ah! Bem sei que se deve conhecer as pessoas aos poucos, mas isso é exagero. – riram em conjunto.
- Creio que e a primeira vez que a vejo aqui.
- Tenho a certeza disso. Não me esqueceria de ter os dois aqui ao mesmo tempo. Permita-me que diga que tenho sido o confidente de ambos. Tem os dois os problemas normais de casados, coisa que já fui e por isso sei do que falo. E de resto, toda a gente sabe que os barmen tem que saber ouvir tão bem como servir bebidas. – confessou.
- De facto, as nossas conversas tem sido um belo suporte a minha sanidade mental. E desculpa se te tenho aborrecido. – respondeu.
- Não tem nada que pedir desculpa. Há pessoas que ouço por cortesia, mas a si ouço por prazer. – via-se que estava a ser sincero.
- Meu bom amigo, ouvir isso é fantástico! Até porque isto não esta fácil. – disse com uma sombra no olhar.
- Claro, o senhor doutor só aqui me aparece quando não está bem. – riu, abrindo um sorriso de conforto.
- Ah, ah! És o meu psiquiatra. Esta cadeira é o divã. E a medicação é esta bela bebida que me serves. – era impossivel estar triste na presença daquela personagem terapêutica.
- Mas diga lá o que o apoquenta. – assumindo a pose de quem vai ouvir.
- O mesmo, mas diferente. Precisei de uma pausa da realidade do dia a dia, mas não sei se desta vez não estou a por tudo em causa. Tenho tudo o que preciso para ser feliz e ainda assim sinto que falta algo. Falta emoção, falta novidade…
- Hummm… - assentiu, sabendo que ainda não era tempo de falar.
- Amo a minha mulher, disso não tenho dúvidas. Mas não sei se é o suficiente. – concluiu.
- Lembra-se das razões porque casou? – era uma pergunta que adivinhava muitas outras.
- Claro que sim. Amava-a. Queria ter uma vida com ela. Queria ter filhos com ela. Ela bastava-me. Só a via a ela. - estava tudo nítido na sua cabeça.
- Vejo que se lembra de tudo. Pois bem, então o que mudou? Deseja outra pessoa? – começava a encurralá-lo.
- Não sei. Acho que desejo algo novo. Por exemplo, aquele mulher que falaste há pouco. Só a vi de costas na piscina e ao jantar, mas senti desejo em conhecê-la. – as confissões surgiam naturalmente.
- Sem lhe ver o rosto. – constatou, sem nada perguntar – Meu caro amigo, essa ânsia de algo novo não é estranha. – sentia que o barman embalava agora – Essa mesma mulher de que fala está na mesma fase. Um casamento longo, vivido, bom. Tudo parece perfeito, mas falta algo. É a rotina que se instala. Esse bicho-da-madeira das relações. Tem de se lutar contra ele. Essas pausas que o senhor e essa mesma senhora fazem não chega. É uma fuga, não uma solução. As coisas não se resolvem com pausas ou tempos para pensar. Isso são adiamentos. Necessários mas que nada resolvem. Há quanto tempo o doutor e a sua esposa não fazem umas férias sozinhos? – perguntou certeiro.
- Há quinze anos! Desde que nasceu o primeiro filho. – respondeu, apercebendo-se do ponto onde William queria chegar.
- Poi! Bem sei da importância dos filhos num casamento, mas as pessoas não se podem esquecer de que é preciso alimentar a relação a dois. Se a mulher que viu na piscina lhe suscitou algo, pode não ter sido aquela mulher específica, mas por ser alguém diferente.
- Talvez, mas ela tinha alguma coisa que me chamou a atenção.
- Meu caro, apenas lhe viu as costas. Posso-lhe dizer que é uma bela mulher para ser descoberta. Gostaria de descobri-la? – sorriu.
- William, eu não vim aqui para trair a minha mulher. Vim para me encontrar. Para descobrir o que se passa comigo. O que se passa connosco!
- De acordo, mas acredito que descobrindo essa mulher mistério, lhe seja mais fácil saber o que sente. Seja como for, pouso aqui ao seu lado a bebida que ela bebe, porque ela vem aí. – enquanto dizia isto, sorria a alguém que se aproximava – Agora é convosco…

Ela sentou-se a seu lado e olharam-se. Apesar da surpresa, o mesmo sorriso cúmplice assomou os lábios de ambos. Ele recuou muitos anos e voltou a sentir-se sedutor. A saber que botões carregar para fazer uma mulher sorrir.
- Boa noite! – disse calmamente, com o coração disparado.
- Boa noite! – respondeu ela, numa voz doce.
- O William deixou aqui a sua bebida. Parece que é a sua favorita.
- De facto, ele sabe o que gosto. – tinha uma timidez genuina, de quem foi apanhada.
- Calculo então que venha para cá há algum tempo. – queria ir devagar, aproveitando o momento.
- Já venho há vários anos. Venho descansar. Descobri o cartão do hotel no bolso do casaco do meu marido e resolvi experimentar.
- Ah, é casada? – estava divertido.
- Sou. Mas o senhor já sabia isso. – ela começava a por as garras de fora – Estou certa que viu a minha aliança. Estou certa que o empregado no restaurante ou o William lhe disse. E estou certa porque o vi nos seus olhos quando me sentei a seu lado. – a voz dela estava segura.
- Está a presumir várias coisas. Será que está assim tão certa? – gostava de a ver assim confiante.
- Aprende-se a conhecer os homens. - afiançou.
- Todos? Seremos todos iguais? O William disse-me que era pessimista. Será que nos vê todos como maus da fita? – arriscou.
- Afinal sempre falou de mim com o William. – tinha um sorriso de triunfo.
- Apenas enquanto os restantes 50% daquilo a que o William chamou “os seus clientes favoritos” – não era ainda tempo de ela ganhar.
- Hummm… Vou acreditar.
- Mas não me respondeu. Seremos todos iguais? – estava a esticar a corda, sabia-o.
- Tempos houve em que não queria saber dos homens. Até a pessoa que aprendi a amar passou por muito antes de me conquistar. – falava sem rodeios.
- Aprende-se a amar? – perguntou.
- Claro que sim. Quando se é magoada, as nossas defesas demoram a soltar-se. Mas depois começa a ver-se que alguém nos conquista quando fala, quando beija, quando está ausente. – explicou.
- Ausente? – estava fascinado a ouvi-la.
- Sobretudo quando está ausente. Aquele provérbio “Longe da vista, longe do coração” é para quem não ama. É quando não se tem a pessoa à frente e nos faz falta que descobrimos que amamos. Sem querer ou por querer, ele deu-me o espaço suficiente para descobrir o que sentia.
- Ele ficou em espera? - sorriu.
- Sim, mesmo não sabendo o que poderia acontecer.
- Teve sorte. – afirmou.
- Eu ou ele? – perguntou, soltando uma gargalhada contagiante.
- Ah, ah! Os dois. Ele porque esperou e correu bem, e você porque pô-lo em espera e ele não fugiu. – riu com ela.
- Quem ama, não foge.
- Não? Então já não o ama? Porque estar aqui é uma fuga. – decidiu passar ao ataque.
- Talvez seja. – pensou uns instantes – Uma fuga, não o deixar de o amar. – havia certeza na voz.
- Então, ama-o? – confrontou-a.
- Disso tenho a certeza. O que tinha dúvidas era se o nosso futuro era conjunto.
- Já pensou em ser infiel? – descarado.
- Nunca. Ele basta-me e gosto de pensar que lhe basto a ele. Não creio que ele seja do tipo infiel. Você é? – quis desviar a conversa dela.
- Sou do tipo fiel. Mas ao vê-la, confesso que senti algo que já não sentia há muito. Foi o relembrar de sentimentos escondidos. – já não havia volta atrás na conversa.
- Ai foi? Mas em que momento? É que pode considerar-se traição. – ela estava divertida.
- Confesso que só a vi de costas na piscina e no restaurante. Nessa altura era só um mistério. O William foi descrevendo-a com enormes elogios e fiquei curioso. Quando a vi, fiquei enfeitiçado.
- Enfeitiçado? Uma palavra que não ouvia há muito tempo. Tinha saudades dela. – o olhar dela ficou embaciado.
- Mas é isso que sinto. Não costumo esconder o que sinto, e tenho uma vontade de estar consigo. De fazer amor, de dormir, de acordar…
- Páre. Não sei como reagir. – vacilou.
- Diga-me o que sente.
- Vontade de me perder. – confessou ela.
- Há muito tempo que me sentia apático, mas chegou o momento de voltar e ser eu mesmo. Quer ir para o meu quarto ou para o seu? – fez a pergunta com o coração a mil, receandoa reacção.
- Nenhum. – havia um sorriso no olhar – Emocionaste-me. Vamos para casa, meu bem.
- Meu amor, sinto que te reencontrei.


Levantaram-se e saíram. William sorriu. Já tinha descoberto há muitos anos que seriam casados um com o outro. Segredos de um barman… "

Autoria de Francisco del Mundo

19 março, 2010

Pai,

Não estou ao pé de ti, mas sei que estás ao pé de mim.

Pai,

Hoje sempre estás no meu coração...

Gosto muito de ti...